[Off-Topic] Opiniões, Verdades, Democracia e Ética

2011 May 04, 03:18 h

Muitas pessoas talvez não tenham entendido minha posição no artigo anterior Mea Culpa: Organizações Democráticas não Funcionam. Recomendo que tentem ler o artigo anterior com calma para entender o conceito correto de Democracia. Mas para complementar devo explicar. O maior problema que todos tem é acreditar que “democracia” é a única e melhor forma de governar ou, mais genericamente, decidir qualquer coisa porque “a maioria”, “o povo”, “as massas” sempre tem razão e o que foi decidido coletivamente deve prevalecer. E este é o maior erro de todos os tempos.

Resumindo o que disse antes: Liberdade é importante, defender a liberdade é importante, e a liberdade mais importante que deve ser defendida é do indivíduo. A maioria jamais deve tiranizar a minoria. E a menor minoria sempre é o indivíduo. Se um indivíduo é privado de sua liberdade, não existe liberdade para ninguém.

Isso dito, num estado de liberdade, todos tem direito a formular e expressar suas opiniões. A confusão é quando uma opinião é proferida por uma “maioria”. Democraticamente falando, essa “opinião” parece ter muito valor. E isso é outro grande erro.

Novamente, vamos definir:

Opinião não é fato nem verdade.

E opinião de uma maioria jamais será automaticamente uma verdade. Qualquer opinião de uma maioria jamais será maior do que a verdade comprovada proferida por um único indivíduo, não importa o volume dessa maioria.

Isso é importante. Justamente por isso eu disse que a melhor forma de pensar em organizações não é de forma “puramente” democrática. No nosso nicho particular de desenvolvimento de software, muitos assumem que agilistas e métodos ágeis são “democráticas”. Se você ler na própria Wikipedia sobre Scrum, teremos esta definição para “equipe”:

Uma Equipe é responsável por entregar o produto. Uma Equipe é tipicamente formada por 5 a 9 pessoas com capacidades cross-funcionais que realizam o trabalho propriamente dito (análise, design, desenvolvimento, teste, comunicação técnica, documentação, etc). É recomendado que a Equipe seja auto-organizada e auto-liderada, mas normalmente trabalhe com alguma forma de projeto ou gerenciamento de equipe.

Em nenhum momento diz que a Equipe pode ser anárquica. Mas as pessoas lêem de forma errada o conceito de auto-organização como “fazemos como queremos”. E isso está completamente errado.

É o mesmo problema de um sistema de governo puramente democrático. A maioria pode de fato decidir entre si a implementação de alguma lei, ou princípio, ou verdade. Por exemplo, um princípio inviolável e indiscutível é que um indivíduo deve conseguir manter para si os produtos do seu próprio trabalho. A comunidade pode decidir, democraticamente, se a implementação será na forma de um corpo policial cujo custo será dividido igualmente entre todos, por exemplo.

Esse é o ponto que falta quando falamos em organizações ou equipes ágeis. As equipes podem decidir democraticamente como executar a implementação, porém todos precisam entender que existem princípios invioláveis que limitam quais decisões essa “democracia” pode tomar. Voto ignorante em grande volume, para mim, significa apenas um grande volume de ignorância. Quer definir o que é verdade? Estude, pesquise, demonstre, prove. Basta um único indivíduo com a demonstração correta para bater destroçar qualquer opinião de qualquer maioria, mas nunca o oposto.

Por exemplo, o objetivo de uma empresa é obter a maior quantidade de lucro possível. Não há outro objetivo em um trabalho que não seja ter lucro. Portanto, não importa se você faz o software mais bem feito – na sua opinião pessoal, diga-se de passagem, o que não torna isso um fato – se ele gera prejuízo em vez de lucro.

Lucro é uma premissa, mas não é a única. Lembre-se da definição de “Equipe” anterior. Uma equipe deve ser “responsável”, ou seja, ela deve se comprometer em entregar um projeto da forma como o cliente espera, incluindo o gerenciamento dessa expectativa (que vou explicar em mais detalhes em outro artigo).

Um projeto encomendado a uma equipe não pertence à equipe, pertence a quem está pagando por ele. Uma equipe dita ágil, que se responsabiliza por um projeto, não está se responsabilizando meramente em codificar o produto pedido, mas sim em cuidar das expectativas do cliente, do começo ao fim.

Mais ainda, o objetivo de um projeto não é fazer um software, é atingir um resultado ao cliente. Ou seja, ao cliente não importa se um software usa técnicas X ou Y que aumentam sua qualidade – qualidade é uma característica trivial já esperada por quem encomenda – o valor do cliente vem do resultado obtido por esse software. Ou seja, o objetivo de um projeto de e-commerce, por exemplo, não é no software de e-commerce em si, mas nas vendas geradas. Se fizer o software mais avançado do mundo, com as melhores arquiteturas, melhores tecnologias, mas que nunca vendeu um único produto, ele não vale nada. Já um e-commerce feito com as piores tecnologias, com todas as gambiarras já documentadas, mas que efetivamente ajudou a gerar 1 milhão de vendas diretas ao seu cliente, é infinitamente superior, inquestionavelmente.

Um desenvolvedor de software deve prezar por seu trabalho técnico. Isso é ótimo e deve continuar. Um arquiteto de sistemas preza por sua análise e arquitetura. Também nenhum problema. Um agilista preza por seus processos e rituais. Cada profissional deve realmente tentar sempre o melhor no que faz. Porém, nenhuma das atividade específicas de cada um é mais importante do que o do outro e nenhuma delas é um fim em si próprio. Ou seja, um desenvolvedor de software preocupado única e exclusivamente no seu código, não importa a qualquer custo, é um péssimo profissional.

E aqui entra a diferença entre um profissional e um amador: ética profissional.

O profissional carrega responsabilidade moral adicional sobre a população em geral e a sociedade. Isso porque profissionais são capazes de realizar e agir em decisões informadas em situações onde o público em geral não conseguiria, porque não tiveram treinamento relevante. Por exemplo, uma pessoa normal do público não poderia ser responsável por falhar em agir em salvar a vítima de um acidente de carro porque ele não conseguiu realizar uma traqueostomia de emergência. Isso é porque ele não tinha conhecimento relevante. Em contraste, um médico totalmente treinado (com o equipamento correto) seria capaz de realizar o diagnóstico correto e realizar o procedimento e nós julgaríamos como incorreto se ele ficasse parado sem ajudar nessa situação. Você não pode ser julgado culpado por não realizar algo que não tem capacidade de fazer. Éticas são regras e valores usados em um ambiente profissional.

A tradição da medicina, por exemplo, está na herança do Juramento de Hipócrates, por milênios sendo atualizada e a seguinte a versão moderna:

Não é nem de longe uma versão “definitiva”, mas vou aproveitar para adaptar de forma muito próxima ao Juramento de Hipócrates o que poderia ser um rascunho de juramento para programadores, apenas para deixar clara a idéia de que todo profissional tem responsabilidades maiores do que meramente sua atividade geral de trabalho:

Meu ponto com esse texto é relembrar o seguinte:

Sinceramente, me incomoda muito pensar num mundo onde uma maioria ignorante pode decidir, por votação, que a terra é chata, que simpatias funcionam, que um funcionário “merece” um salário compulsoriamente maior do que uma empresa tem condições de pagar, que o divertimento de um “profissional” está acima de suas responsabilidades. Jurem a si mesmos – não a mim ou a um terceiro qualquer – que serão profissionais, ou desistam de trabalhar na mesma área que nós para parar de nos envergonhar, nós que levamos isso a sério.

tags: off-topic principles management agile carreira

Comments

comentários deste blog disponibilizados por Disqus